06 novembro 2025

100 Fábulas Fabulosas (Notas de Livro)

Título: 100 Fábulas Fabulosas

Autor: Millôr Fernandes

Rio de Janeiro: Record, 2003. 

Uma Sátira Virada de Ponta-Cabeça.

Neste livro, entre outras descobertas etimologicamente fabulosas, o autor revela como os animais falavam no tempo em que deram origem a tantas fábulas. Fixando hieróglifos da Rosetta e cruzando-os com ícones do Obelisco Negro de Shalmanazar (858 a.C.), o autor conseguiu reverter diversas fábulas, retirando destas sua moral original.

As fábulas passeiam da China aos nichos do INSS. Das mais simples e básicas emoções humanas até as filosofias mais complexas. Tudo isso temperado por uma noção surpreendente do mundo.

Ambições Desmedidas

À maneira do... Crato de cratoleba

Chorando e mais chorando, o filho chegou junto do pobre e magro pai:

— Tô com a fome, pai! Tô com a fome!

O pai ergueu sua face magra de barba rala, bateu culpadamente na cabeça chata do filho e disse:

— Pede, meu filho, pede. Que é que você quer comer? Mesmo que seja o cavalo de São Jorge ou o Dragão da Maldade, eu mato pra você comer. O sertanejo é antes de tudo um forte.

— Não, pai, não quero nada disso respondeu o pranteado (1) filho. — Não preciso de vosso hediondo esforço, inaudito risco ou insólito sacrifício. Quero só feijão, rapadura e farinha.

— Filhos, filhos! — queixou-se o pai, amargurado. — Só pedem o impossível!

MORAL. Há um limite até para o mínimo.

(1) Pranteado aqui não é sinônimo de morto. Lembrem se de que o filho estava chorando.  


É Caindo que aprende (XXVII)

À maneira dos... argentinos

Ao sair de um bar onde tinha o hábito de discutir com outros bêbados suas articulações políticas, o candidato ao trono foi-se mal das pernas, tropeçou, vacilou e caiu no chão, não quebrando o nariz por se amparar nas mãos. Levantou-se a custo, recusou orgulhosamente qualquer auxílio, mas, assim que se levantou, as pernas bombearam e ele caiu outra vez. Sem forças, apoiou-se nas mãos e refletiu, pra iluminação de seus discípulos:

— Se eu soubesse que ia cair segunda vez, teria poupado o esforço de me levantar a primeira.

MORAL Taí por que os sábios andam de quatro 


A Esperteza (C)

À maneira dos... croatas

— Deus do céu, meu sobrinho, este pano ainda está aqui? — disse o velho comerciante eslavo (1), quando, ao mexer na prateleira de fazendas, encontrou uma peça que tinha colocado ali há mais de seis meses.

— Mas, tio, como é que eu posso vender essa fazenda? — Perguntou o sobrinho. — Está velha, manchada, mofada, e o padrão saiu de moda há muito tempo.

— Ora, meu caro sobrinho, vendendo. Olha! Vem a calhar. Veja e aprenda — disse o velho fazendeiro (2) ao ver entrar na loja uma velhinha bem velhinha, daquelas que, a essa altura, nem velhinha deveria ser mais. (3)

— Que deseja, minha senhora? — falou ele, cheio de mesuras. E, antes que a velhinha se explicasse em sua voz já longínqua, passou a mostrar rolos e rolos de fazenda, sem mostrar, naturalmente, a que pretendia mesmo vender, mas deixando sempre que ficasse bem visível aos olhos (4) da velhinha. E, como os leitores já adivinharam, (5) depois de algum tempo a velhinha saía da loja com a peça de fazenda velha e mofada, tendo pago por ela o dobro do preço que pagaria por uma peça nova. Mas aparentemente convencida do que lhe dissera o vendedor: estava comprando uma raridade inglesa, um desenho único, etcétera, etcétera, etcétera.(6) Quando a velha saiu, o velho mercador mostrou pro sobrinho a nota de quinhentão que ela deixara e lhe deu a lição definitiva e eterna da história do comércio:

— Vê, meu sobrinho, uma mercadoria jamais se vende pelas suas qualidades, mas sim pelas qualidades do vendedor. A mercadoria tem o valor de quem a propõe no mercado.

O garoto olhou a nota espantado e disse ao tio:

— Maravilhoso, meu tio, e profundamente verdadeiro. Mas tem também o valor da malandragem do comprador que faz sempre o preço da mercadoria reverter a seu valor verdadeiro (7). Vê só, tio: a velhinha pagou ao senhor com uma nota falsa. Bota os óculos.

MORAL Não há vitória definitiva.

(1) Ao fundo e ao cabo, todo comerciante é eslavo.

(2) O que vende fazendas.

(3) No máximo, poderia ser uma ex-velhinha.

(4) Embaraçados.

(5) Não sei pra que é que eu escrevo!

(6) Etcétera.

(7) Mais ou menos por aí começa a lei da oferta e da procura.


As Irrefutabilidades Matemáticas (XXX)

à maneira dos... Circassianos

Ney Sir, o Grande Agregado, foi visitar seu determinado e importante discípulo, Ma Son II, Condestável Perene, levando pela mão o belho filho. Ma Son II recebeu Ney Sir na Sala das Salamndras e lhe ofereceu um chá de tulipas em Chávenas de Pranto de Alá, a mais rica louça do reinado de Luf Ma IV. No meio da tertúlia entrou a mulher de Ma Son II, trazendo pela mão a maravilhosa Íris do Sol, sua pequena filha. As duas se curvaram, no rito secular, e se retiraram para os fundos da casa, pois é assim que devem fazer as mulheres em todos os tempos. Nesse momento Ney Sir falou:

— Ma Son II, eu vim aqui com uma missão, e, ao ver a beleza de sua filha, não resisto mais — que idade tem?

— Dois anos, Mestre — respondeu o Condestável Perene.

— Pois é perfeito — tornou Ney Sir. — Meu filho tem quatro anos. Eu lhe proponho que os dois se casem no próximo Mês das Tamareiras.

— Perdão, Mestre, mas não posso aceitar tal absurdo. Acho mesmo uma monstruosidade, uma proposta de infelicidade permanente para ambos: a diferença de idade é brutal.

— Como brutal — disse Ney Sir. — Ele tem quatro anos, ela dois. Uma diferença de apenas dois anos.

— Perdão, Grande Mestre, mas é espantoso defender tão trivial matemática. Ele não é apenas dois anos mais velho do que ela; ou melhor, isso não importa. O que importa é ele ter o dobro da idade dela. Se não consideramos isso, nos perdemos numa aritmética pueril que, como sabe vossa sabedoria, foi o que sempre fez a infelicidade dos indivíduos e dos povos. Hoje ele tem quatro anos, ela tem dois. Mas amanhã ele terá oito, ela quatro; depois, ela vinte, ela dez; em seguida, ele quarenta, ela vinte. E quando tiver 60 nada poderá advir de bom para um homem tão idoso casado com uma mulher que tem apenas trinta anos. Perdoe-me, mas a diferença é demasiada. Aceita outra chávena?

MORAL É por essas e outras (muitas outras) que nossa distribuição de renda é o que é.


Na Fronteira da Esperança (XXI)

O guarda parou o carro na barreira da Nova República.

— Parabéns — disse ele ao motorista do carro — acaba de ganhar o prêmio de um milhão de cruzeiros!  É o milésimo motorista que entra na nova estrada de Progresso e de Liberdade. O que é que o senhor pretende fazem com esse dinheiro?

— Eu? — respondeu o motorista. — A primeira coisa que vou fazer é comprar uma carteira de motorista.

— Não presta atenção nesse idiota, não! — gritou a mulher que estava ao lado do motorista. — Ele vem bebendo desde que entramos na estrada; já está completamente bêbado!

— Bêbado nada, sua idiota! — falou a velha que estava no fundo do carro. — Se meu filho estivesse bêbado, não tinha conseguido roubar o carro.

— Magnífico o bom humor de vocês — disse o guarda. — Podem ir. Boa viagem.

MORAL Toda a repressão tem sua cota de permissividade. 


Sábias Divergências (XV)

à maneira dos... siberianos

Dois homens de alta sabedoria se encontram no meio de uma estrada estreita em Irks-Polustski. Um deles, vendo que o outro não lhe dava passagem, gritou:

— Sai do meu caminho, filho de um cão pária e reco-reco.

Ao que o outro reagiu:

— Tu, que jamais tiveste consciência do espírito e espírito de consciência, deverias sair do caminho de um homem que está acima das vãs trivialidades do teu pensamento. Sai, afasta-te, verme!

— Se conhecesses os princípios e os fins, os mistérios da escatologia, me darias passagem, cão sarmento e teco-teco — replicou o outro.

— Se princípios e fins fossem do teu conhecimento, há muito já estarias morto, e a escatologia tinha ido pro brejo — questionou o segundo sábio.

Um professor de filosofia, que ia passando com seus alunos, ordenou:

— Parem! Parem e prestem atenção às belezas infinitas das altas discussões culturais!

Os alunos pararam e ouviram, até que um deles disse:

— Mas me parece que esses dois aí estão apenas se esculhambando.

— Quando os sábios tratam de princípios e especulações filosóficas, tudo que dizem é filosofia — explicou o professor.

— Mas, então, aventurou o discípulo —, quando é que a coisa se torna ofensa e agressão?

Quando é dita por qualquer pessoa comum, sem interesse cultural. A cultura — aprenda — está sempre acima e além da prosaica busca de convivência e harmonia social.

MORAL. Só na guerra se aprende a beleza da paz.

 

 

 

 

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