Título: 100 Fábulas Fabulosas
Autor: Millôr Fernandes
Rio de Janeiro: Record, 2003.
Uma Sátira Virada de Ponta-Cabeça.
Neste livro, entre outras descobertas etimologicamente
fabulosas, o autor revela como os animais falavam no tempo em que deram origem
a tantas fábulas. Fixando hieróglifos da Rosetta e cruzando-os com ícones do
Obelisco Negro de Shalmanazar (858 a.C.), o autor conseguiu reverter diversas
fábulas, retirando destas sua moral original.
As fábulas passeiam da China aos nichos do INSS. Das mais simples e básicas emoções humanas até as filosofias mais complexas. Tudo isso temperado por uma noção surpreendente do mundo.
Ambições Desmedidas
À maneira
do... Crato de cratoleba
Chorando
e mais chorando, o filho chegou junto do pobre e magro pai:
— Tô com a
fome, pai! Tô com a fome!
O pai
ergueu sua face magra de barba rala, bateu culpadamente na cabeça chata do
filho e disse:
— Pede,
meu filho, pede. Que é que você quer comer? Mesmo que seja o cavalo de São
Jorge ou o Dragão da Maldade, eu mato pra você comer. O sertanejo é antes de
tudo um forte.
— Não,
pai, não quero nada disso respondeu o pranteado (1) filho. — Não preciso de vosso
hediondo esforço, inaudito risco ou insólito sacrifício. Quero só feijão,
rapadura e farinha.
— Filhos, filhos! — queixou-se o pai, amargurado. — Só pedem o impossível!
MORAL. Há um limite até para o mínimo.
(1) Pranteado aqui não é sinônimo de morto. Lembrem se de que o filho estava chorando.
É Caindo que aprende (XXVII)
À maneira dos... argentinos
Ao sair de um bar onde tinha o hábito de discutir com outros bêbados suas
articulações políticas, o candidato ao trono foi-se mal das pernas, tropeçou,
vacilou e caiu no chão, não quebrando o nariz por se amparar nas mãos. Levantou-se
a custo, recusou orgulhosamente qualquer auxílio, mas, assim que se levantou,
as pernas bombearam e ele caiu outra vez. Sem forças, apoiou-se nas mãos e
refletiu, pra iluminação de seus discípulos:
— Se eu soubesse que ia cair segunda vez, teria poupado o esforço de me
levantar a primeira.
MORAL Taí por que os sábios andam de quatro
A Esperteza (C)
À maneira dos... croatas
— Deus do céu, meu sobrinho, este pano ainda está aqui? — disse o velho
comerciante eslavo (1), quando, ao mexer na prateleira de fazendas, encontrou
uma peça que tinha colocado ali há mais de seis meses.
— Mas, tio, como é que eu posso vender essa fazenda? — Perguntou o
sobrinho. — Está velha, manchada, mofada, e o padrão saiu de moda há muito
tempo.
— Ora, meu caro sobrinho, vendendo. Olha! Vem a calhar. Veja e aprenda —
disse o velho fazendeiro (2) ao ver entrar na loja uma velhinha bem velhinha,
daquelas que, a essa altura, nem velhinha deveria ser mais. (3)
— Que deseja, minha senhora? — falou ele, cheio de mesuras. E, antes que
a velhinha se explicasse em sua voz já longínqua, passou a mostrar rolos e
rolos de fazenda, sem mostrar, naturalmente, a que pretendia mesmo vender, mas
deixando sempre que ficasse bem visível aos olhos (4) da velhinha. E, como os
leitores já adivinharam, (5) depois de algum tempo a velhinha saía da loja com
a peça de fazenda velha e mofada, tendo pago por ela o dobro do preço que
pagaria por uma peça nova. Mas aparentemente convencida do que lhe dissera o
vendedor: estava comprando uma raridade inglesa, um desenho único, etcétera,
etcétera, etcétera.(6) Quando a velha saiu, o velho mercador mostrou pro
sobrinho a nota de quinhentão que ela deixara e lhe deu a lição definitiva e
eterna da história do comércio:
— Vê, meu sobrinho, uma mercadoria jamais se vende pelas suas
qualidades, mas sim pelas qualidades do vendedor. A mercadoria tem o valor de
quem a propõe no mercado.
O garoto olhou a nota espantado e disse ao tio:
— Maravilhoso, meu tio, e profundamente verdadeiro. Mas tem também o
valor da malandragem do comprador que faz sempre o preço da mercadoria reverter
a seu valor verdadeiro (7). Vê só, tio: a velhinha pagou ao senhor com uma nota
falsa. Bota os óculos.
MORAL Não há vitória definitiva.
(1) Ao fundo e ao cabo, todo comerciante é eslavo.
(2) O que vende fazendas.
(3) No máximo, poderia ser uma ex-velhinha.
(4) Embaraçados.
(5) Não sei pra que é que eu escrevo!
(6) Etcétera.
(7) Mais ou menos por aí começa a lei da oferta e da procura.
As Irrefutabilidades Matemáticas (XXX)
à maneira dos... Circassianos
Ney Sir, o Grande Agregado, foi visitar seu determinado e
importante discípulo, Ma Son II, Condestável Perene, levando pela mão o belho
filho. Ma Son II recebeu Ney Sir na Sala das Salamndras e lhe ofereceu um chá
de tulipas em Chávenas de Pranto de Alá, a mais rica louça do reinado de Luf Ma
IV. No meio da tertúlia entrou a mulher de Ma Son II, trazendo pela mão a
maravilhosa Íris do Sol, sua pequena filha. As duas se curvaram, no rito
secular, e se retiraram para os fundos da casa, pois é assim que devem fazer as
mulheres em todos os tempos. Nesse momento Ney Sir falou:
— Ma Son II, eu vim aqui com uma missão, e, ao ver a beleza
de sua filha, não resisto mais — que idade tem?
— Dois anos, Mestre — respondeu o Condestável Perene.
— Pois é perfeito — tornou Ney Sir. — Meu filho tem quatro
anos. Eu lhe proponho que os dois se casem no próximo Mês das Tamareiras.
— Perdão, Mestre, mas não posso aceitar tal absurdo. Acho mesmo
uma monstruosidade, uma proposta de infelicidade permanente para ambos: a
diferença de idade é brutal.
— Como brutal — disse Ney Sir. — Ele tem quatro anos, ela
dois. Uma diferença de apenas dois anos.
— Perdão, Grande Mestre, mas é espantoso defender tão trivial matemática. Ele não é apenas dois anos mais velho do que ela; ou melhor, isso não importa. O que importa é ele ter o dobro da idade dela. Se não consideramos isso, nos perdemos numa aritmética pueril que, como sabe vossa sabedoria, foi o que sempre fez a infelicidade dos indivíduos e dos povos. Hoje ele tem quatro anos, ela tem dois. Mas amanhã ele terá oito, ela quatro; depois, ela vinte, ela dez; em seguida, ele quarenta, ela vinte. E quando tiver 60 nada poderá advir de bom para um homem tão idoso casado com uma mulher que tem apenas trinta anos. Perdoe-me, mas a diferença é demasiada. Aceita outra chávena?
MORAL É por essas e outras (muitas outras) que nossa distribuição de renda é o que é.
Na Fronteira da Esperança (XXI)
O guarda parou o carro na barreira da Nova República.
— Parabéns — disse ele ao motorista do carro — acaba de ganhar o prêmio
de um milhão de cruzeiros! É o milésimo motorista
que entra na nova estrada de Progresso e de Liberdade. O que é que o senhor
pretende fazem com esse dinheiro?
— Eu? — respondeu o motorista. — A primeira coisa que vou fazer é comprar
uma carteira de motorista.
— Não presta atenção nesse idiota, não! — gritou a mulher que estava ao
lado do motorista. — Ele vem bebendo desde que entramos na estrada; já está
completamente bêbado!
— Bêbado nada, sua idiota! — falou a velha que estava no fundo do
carro. — Se meu filho estivesse bêbado, não tinha conseguido roubar o carro.
— Magnífico o bom humor de vocês — disse o guarda. — Podem ir. Boa viagem.
MORAL Toda a repressão tem sua cota de permissividade.
Sábias Divergências (XV)
à maneira dos... siberianos
Dois homens de alta sabedoria se encontram no meio de uma
estrada estreita em Irks-Polustski. Um deles, vendo que o outro não lhe dava
passagem, gritou:
— Sai do meu caminho, filho de um cão pária e reco-reco.
Ao que o outro reagiu:
— Tu, que jamais tiveste consciência do espírito e espírito
de consciência, deverias sair do caminho de um homem que está acima das vãs trivialidades
do teu pensamento. Sai, afasta-te, verme!
— Se conhecesses os princípios e os fins, os mistérios da
escatologia, me darias passagem, cão sarmento e teco-teco — replicou o outro.
— Se princípios e fins fossem do teu conhecimento, há muito
já estarias morto, e a escatologia tinha ido pro brejo — questionou o segundo sábio.
Um professor de filosofia, que ia passando com seus alunos,
ordenou:
— Parem! Parem e prestem atenção às belezas infinitas das
altas discussões culturais!
Os alunos pararam e ouviram, até que um deles disse:
— Mas me parece que esses dois aí estão apenas se
esculhambando.
— Quando os sábios tratam de princípios e especulações filosóficas,
tudo que dizem é filosofia — explicou o professor.
— Mas, então, aventurou o discípulo —, quando é que a coisa
se torna ofensa e agressão?
— Quando é dita por qualquer pessoa comum, sem interesse cultural. A cultura — aprenda — está sempre acima e além da prosaica busca de convivência e harmonia social.
MORAL. Só na guerra se aprende a beleza da paz.

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