Título: Millôr Definitivo: a Bíblia do Caos
Autor: Millôr Fernandes
Porto Alegre: L&PM,
2011.
Explicação e Agradecimento
Foi um livro difícil. Tomou exatamente cinquenta anos para ser feito. Começando em jornal antes de completar 14 anos, desde cedo, sem que soubesse por que, chamado humorista, o autor escreveu e desenhou ininterruptamente em periódicos sem periodicidade definida, e em publicações semanais e jornais diários. Pra ser exato: 25 anos na revista O Cruzeiro, 14 anos na revista Veja, 6 anos no Pasquim, 10 anos em IstoÉ, 8 anos no Jornal do Brasil e períodos de alguns anos na Tribuna de Imprensa e Correio da Manhã. O passar desses anos, se não ampliou um talento apenas comum (talento não potência) trouxe um certo aprimoramento de forma e, sem dúvida, talvez pela exaustão e pelo tédio (ou pela consciência profissional de não encher o saco do leitor), um grande poder de concisão e uma filosofia a respeito: não se escreve com 11 palavras o que se pode escrever com 10 (a não ser que você seja americano e ganhe por palavra; aí a proposição deve ser invertida).
Abismo
O Brasil já está à beira do abismo. Mas ainda vai ser preciso um grande
esforço de todo mundo para colocarmos ele novamente lá em cima.
Abreviação
Palavra comprida para coisas curtas.
Abstinência
Não beber é vício dos abstinentes.
Acordo
Está bem. Deus é brasileiro. Mas para defender o Brasil de tanta corrupção
só colocando Deus no gol.
Administrador
Administrar acima de qualquer suspeita é o que dá golpe na empresa
quando há lucros extraordinários.
Admiração
Como são admiráveis essas pessoas que conseguem atravessar a vida toda
sem fazer nada de admirável.
Advogado
O advogado é sócio do crime.
Grandes advogados conhecem muita jurisprudência. Advogados geniais
conhecem muitos juízes.
Advogado de defesa
A notoriedade do advogado de defesa aumenta na medida em que faz voltar
à circulação, com atestado de homens de bem, os piores assassinos, ladrões e
contraventores. (A máquina da justiça,
1962)
Afinidade
Quando duas pessoas odeiam a mesma pessoa, têm a impressão de que se se
estimam.
Alkaseltzer
A invenção do alkaseltzer foi uma tremenda tempestade num copo d’água.
Ambiguidade
Como é mesmo que Stefan Zweig disse: “País do futuro” ou “País do faturo”.
Americanismo
Tão americanizado que em vez de dizer outrossim, dizia outroyes.
Amnésia
E como dizia Dom Pedro I, acordando de ressaca no dia 8 de setembro de
1822: “Eu ontem, de pileque, proclamei o quê?”
Em casos de amnésia, o negócio é o doutor cobrar adiantado.
Você, tão jovem, e já com amnésia? Esquece!
Analfabeto
Pelo menos uma qualidade o analfabeto tem — não comete erros de
ortografia.
Quem não lê é mais analfabeto do que quem não sabe ler.
Os analfabetos têm falta de vitamina ABC.
Dinheiro
"O dinheiro não tem pátria", como dizia o político, vendendo a sua por trinta dinheiros.
A diferença entre o dinheiro miúdo e o dinheiro graúdo é que este, naturalmente, fala mais alto.
O dinheiro compra o cão, o canil e o abanar do rabo.
O dinheiro não traz felicidade. Mas o pobre não tem autoridade para afirmar isso.
Quanto pesa um saco enorme cheio de moedas de ouro? Nada. Dinheiro não pesa.
Realmente, o dinheiro não é tudo. Temos também as ações ao portador, alguns terrenos na Barra, doze apartamentos no centro, joias — e alguns quadros comprados de artistas moribundos.
Já vi gente cansada de amor, de trabalho, de política, de ideais. Jamais conheci alguém sinceramente cansado de dinheiro.
O dinheiro não compra amizade. Mas com ele você pode arruinar seus inimigos.
O dinheiro não traz felicidade. Ou melhor: o Cruzeiro não traz felicidade. O Dólar traz. (1978)
Diploma
Diploma, títulos, PhDs! A natureza, ao fazer um ser humano competente, por acaso consulta faculdades?
Direito
O direito de cada um termina quando o outro reage ou chama a polícia.
E Esaú vendeu seus direitos de primogênito por um prato de lentilhas, homologando os royalties.
Disciplina
Quando o comandante reclama do subordinado está, naturalmente, impondo a disciplina. Quando o subordinado reclama do comandante, está, obviamente, se indisciplinando.
Dívida
A vantagem de dever muito sobre dever pouco é que, quando devemos pouco, temos de ir ao banco. Quando devemos muito, o banco vem a nós.
Gênio
Escritor, para ser genial, não precisa ter muitas ideias; basta que sejam incompreensíveis.
Geometria
A pedra que sobre o papel é incapaz de traçar uma linha reta, dentro d’água faz círculos perfeitos.
Estou certo de que as paralelas se encontram nos paralepipedos (1963)
O caminho mais curto entre dois bares é o ziguezague.
O caminho mais reto entre um ponto e outro é a linha curta.
Gerontologia
Gerontologia é uma ciência que faz o homem ficar cada vez mais velho. (Falsa Cultura)
Idiota
Depois de certa idade o idiota nem
tem graça.
Não
reclama, não: quando um cara quer te fazer de idiota, é porque encontrou
material.
Dizem que,
quando um idiota morre num acidente, toda uma telenovela passa subitamente
diante de seus olhos.
Existe coisa mais apropriada do que o silêncio de um idiota?
O idiota
sempre vê uma besteira como uma obra-prima. E vice-versa. (Se é que existem besteira
e obra-prima.)
Quando você
se sente um perfeito idiota está começando a deixar de sê-lo.
Quando você,
depois de muito esforço, consegue convencer um idiota com seus argumentos, bem,
está na hora de mudar de ideia.
Responda
depressa: Quem cuida do id é idiota?
Não há nada
mais idiota que um idiota querendo bancar que não é.
Quem diz que ninguém é perfeito é porque nunca viu um perfeito idiota.
Se você
responde a um idiota à altura, isto é, com a mesma espécie de idiotice, no fim
de certo tempo sentirá a estranha sensação de estar participando de uma
telenovela.
Há muita
besteira bem-dita, assim como há muito idiota bonito.
Junta
Junta é uma matilha de doutores (Novos Coletivos).
Reuniu-se a junta de médicos. O doente morreu por unanimidade.
Justiça
A justiça é igual para todos. Aí já começa a injustiça.
A justiça não é apenas cega; sua balança está desregulada e a espada sem fio.
Justiça não é cega, mas perdeu a lente de contato.
Luz
A luz
percorre 299.792.458 metros por segundo. Exceto, naturalmente, no escuro.
Marx
Marxismo atualizado: “Já que não podemos fazer nada pelos miseráveis, precisamos, pelo menos, diminuir a grita dos contentes”.
Marxismo
Os marxistas brasileiros incorporaram com ardor tendências trotskistas, stalinistas, maoístas, e até albanesas. Mas têm que entender que só chegarão ao poder no dia em que incorporarem um pouco mais da TVGLOBO.
Paciência
Se as
pessoas tivessem um pouquinho de paciência, esperassem um pouquinho mais,
acabavam pensando antes de falar.
Poliglota
Conhece com
perfeição seis línguas mortas. Quando morrer vai ser um cadáver extremamente
popular.
Pontualidade
Existe coisa que deixe uma pessoa mais irritada do que esperar por outra 45 minutos no lugar errado?
Quadrilha
Quadrilha é um ministério de ladrões. (Novos coletivos)
Semântica
O possível está, semanticamente,
contido no impossível.
Você pode atirar pérolas aos porcos. Mas
não adianta nada atirar pérolas ao gatos, aos cães ou às galinhas porque isso não
tem nenhum significado estabelecido.
Nesta época de semântica desvairada já
não se chamam mais de corruptos. São apenas pessoas movidas pela ideologia da
propina.
A semântica é o ópio dos
psicanalistas.
CAPA
EXPLICAÇÃO
DESNECESSÁRIA
Para
que o leitor não corra aos dicionários, com risco de acidente fisico-cultural,
e pra que não pense que algumas palavras da capa são invencionices filológicas,
tipo fi-lo porque qui-lo, o autor desvenda aqui os significados:
ABSURDOS — que foge à qualquer convívio com o raciocínio de pessoas dignas e bem pensantes. Pior só o abmudo. Ou, ainda mais, o absurdomudo;
AFORISMOS — conceito, em geral de caráter moralístico. Donde preconceito;
ALOGIAS — contrassenso, incapacidade de expressão por lesão dos centros nervosos ou por falta de lógica pura e simples;
APODOS — zombaria, apelido, dito depreciativo. Quem usa apodos não tem recalques. Ou se livra deles ao usar os apodos;
APOTEGMAS — dito econômico sentencioso, curto e grosso;
AQUELAS — você conhece aquela do Antônio Houaiss?;
ARGUMENTOS — indícios com que se procura provar (defender) alguma coisa;
CISMAS — preocupação, reflexão tendente à desconfiança e à suspeita. Cisma-se com tudo e com todos;
COGITAÇÕES — essa é fácil por causa do Descartes que a popularizou: "cogito, ergo sum." O cara que cogita é cogitabundo;
CONCEITOS — avaliação de atitude ou pronunciamento;
CONCLUSÕES — é isso aí, e não se toca mais no assunto. Falei, tá falado;
CONSIDERAÇÕES — jeito de refletir que acaba por nos trazer respeito pelos outros pobres diabos como nós e levar a tratá-los com a devida...consideração;
DESABAFOS — quando a pessoa mente ou conta vantagens a isso se chama bafo. Desabafo é exatamente o contrário;
DESCOCOS — descaramento, puro e simples;
DESPAUTÉRIOS — besteira sem tamanho, asneira desmedida. Dizem que a palavra vem de Van Pauteren, filósofo flamengo do século XV, famoso por formulação de teorias linguísticas idiotas.
DESPROPÓSITOS — coisa inteiramente deslocada da realidade ou do que se está falando, dita fora de hora, de lugar, de meio. Sempre divertido de usar, sobretudo em velórios;
DESVARIOS — parente do tresvarios, já citado;
DEVANEIOS — fantasia cerebral, própria de pensadores amadores;
DISLATES — asneira pura e simples, sem mais enfeites;
DISPARATES — o sentido vem de um jogo de salão em que ouvindo uma coisa (nome, substantivo) segredada num ouvido e uma definição aleatória segredada no outro, o ouvinte revelava aos circunstantes os dois enunciados juntos, provocando gargalhadas;
DITOS — Mexerico e também obscenidade. Se você não encontrar essas definições em seus dicionários, dê o dito pelo não dito;
ELUCUBRAÇÕES — passar longo tempo ponderando, pensando, antigamente à luz de velas bruxuleantes. Edgar Poe quando lucubrava em suas madrugadas drogadas acabava dialogando com corvos inexistentes. Dizem que inicialmente era um papagaio;
ENORMIDADES — Absurdo sem tamanho. "O Millôr nesse livro só disse enormidades";
ESCÓLIOS — explicação de um texto clássico. Ou a complicação de um texto novo a fim de que ele se torne clássico;
ESPECULAÇÕES — Considerar minuciosamente, para errar com absoluta certeza;
ESTULTÍCIAS — aquilo em que se compraz o estulto; forma filosófica de duas premissas e uma conclusão para embatucar todos nós: "Nenhum homem é perfeito. Todo prefeito é homem. Logo nenhum prefeito é perfeito.";
ESTULTILÓQUIOS — palavrório, discurso estulto, tolo, néscio, imbecil, insensato, inepto, estúpido; espera aí vocês vieram pra me ler ou pra ofender?;
FILACTÉRIOS — espécie de breve ou amuleto usado pelos judeus pendurado no pescoço, ou no braço, contendo sentenças da lei mosaica. Dito, portanto, irretorquível, xiíta;
GALIMATIAS — palavras incompreensíveis, como se fossem pronunciadas em Babel, em todas as línguas;
GNOMAS — afirmativa de caráter moral. Geralmente é conservadora, proclamada há tantos anos que pode ser considerada imoral. O mundo já girou, a Lusitana rodou e o gnoma permaneceu o mesmo;
HERESIAS — qualquer coisa de que a gente não gosta e da qual não consegue se defender
HIDROFOBIAS — Os latidos precursores da mordida. Dizedelas — Ditos.
IDEIAS — Augusto dos Anjos: "Vem do encéfalo absconso que a constringe". Uma coisa de que as pessoas geralmente são meras repetidoras. Quando alguém tem duas ideias por semana, como acreditava Shaw, é considerado um gênio;
IMPRUDÊNCIAS — falar o que não deve, ou o que deve em momento indevido, uma forma de firmeza de caráter desconhecida por políticos;
INCOERÊNCIAS — em física a propriedade de um ciclo de ondas com fases que não guardam relações constantes entre si. É por aí;
INSULTOS — ofensa, injúria que as vezes ataca a própria pessoa, e se chama insulto cerebral;
INTROSPECÇÕES — mergulho que o cavalheiro faz em si mesmo numa busca de verdades interiores, já que aqui fora estamos em falta. Psicanálise sem psicanalista;
LEVIANDADES — ligeireza, irresponsabilidade, incapacidade de levar o leitor a sério, mesmo quando ele compra um livro de 500 páginas;
MÁXIMAS — basicamente de caráter moral, comumente popular, sempre com aparência de verdade definitiva. Isso não existe; a máxima é uma mentira absoluta, quase sempre conservadora ou reacionária;
MEDITAÇÕES — concentração profunda e prolongada do espírito. Espremido bem, o cara acaba confessando: estava era mesmo pensando em sacanagem;
MEMÓRIAS — geralmente aquilo que se esquece;
MIOPIAS — estreiteza de opinião que leva fatalmente à estreiteza de visão;
MOTES — divisa, lema de brasão, afirmativa altaneira de cavalheiros templários, hoje reduzida à tema pelos cantadores de feira: "Me dá o mote";
NECEDADES — pacovice, barbaquice, bertoldice, bernardice; pronto, ficaram na mesma;
OBSESSÕES — Ideia fixa: o que dá ao obsessivo o conforto de não ter que mudar de ideia;
PARADOXOS — ir contra o senso comum, contra a própria lógica aparente, contradizer se contradizendo. Não é bom?;
PARANOIAS — afirmativas que revelam mania de grandeza, ambições suspeitas, ou mesmo insuspeitas, por que não?;
PENSAMENTOS
— função cerebral. Reflexão que envolve todos os sentidos e atos do ser humano.
Lupicínio Rodrigues achava: "O pensamento parece uma coisa à toa mas como
é que a gente voa quando começa a pensar.";
PLÁCITOS — Achar bom, aprovar; donde beneplácito. Simples, no, mamita?
PONDERAÇÕES — espécie de reflexão tão detalhista e lenta, que leva o ponderador a ser devagar;
PRECEITOS — princípios, prescrições, tentativa de impor aos outros aquilo que assumimos como certo e que, possivelmente, nunca nos serviu pra nada;
PROPOSIÇÕES — pensamento com caráter provisório, proposto para ser confirmado ou negado; muito comum é a proposta indecorosa. Quase sempre tentadora. Geralmente aceita;
PRÓTASES — depois da prótase, como ninguém ignora, vem a epitase e logo depois, como qualquer menino sabe, a catástase. Ou vocês, na gramática, não aprenderam também a prótese, a epêntese e a parágoge?;
RACIOCÍNIOS — constante esforço humano para provar a si próprio uma impossibilidade — a de que é um animal racional. Só isso já prova a irracionalidade humana, sem a feliz, porque completa, irracionalidade dos outros animais;
REFLEXÕES — o pensamento deixando de ser reflexo do exterior e voltando-se sobre o próprio refletidor. Em física a modificação da propagação de uma onda, fazendo-a voltar ao ponto inicial. Não ficou mais claro?;
SANDICES — parvoíce, coisa de maluquete;
SINGULARIDADES — como me afirmou Camilo Castelo Branco: "Ora, o senhor Millôr está a dizer coisas que parecem de doudo.";
SOFISMAS — argumento que parte de premissas corretas para conclusões perfeitamente mentirosas, mas irrefutáveis. Tipo silogismo critico; "Todo bom e barato é raro. Todo raro é caro. Logo todo bom e barato é caro.";
TERGIVERSAÇÕES — subterfúgios, fuga aos compromissos, explicações pra brochuras.
TRESVARIOS — desvario potenciado;
Explicação de termos ou sentenças
Esaú vende a sua primogenitura. Esaú vendeu sua primogenitura para Jacó por um prato de guisado de lentilhas, um evento narrado em Gênesis 25:29-34 na Bíblia, onde, faminto, ele desprezou o valor de seu direito de herança espiritual e material em troca de comida imediata, selando o acordo com um juramento. O significado é simples: Prioridades Trocadas: O ato de Esaú simboliza a troca de bens espirituais e bênçãos futuras por satisfação material e imediata, um desprezo pelo sagrado em favor do temporal. Consequências: Este evento estabeleceu o caminho para que Jacó recebesse a bênção patriarcal e a herança do convênio abraâmico, conforme narrado nos capítulos seguintes de Gênesis. Devemos valorizar o que é duradouro e não se deixar levar por desejos passageiros.
Royalties. São pagamentos periódicos feitos a um detentor de direitos (autor, inventor, proprietário) pelo uso, exploração ou comercialização de um bem.
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