Título: 100 Fábulas Fabulosas
Autor: Millôr Fernandes
Rio de Janeiro: Record, 2003.
Uma Sátira Virada de Ponta-Cabeça.
Neste livro, entre outras descobertas etimologicamente
fabulosas, o autor revela como os animais falavam no tempo em que deram origem
a tantas fábulas. Fixando hieróglifos da Rosetta e cruzando-os com ícones do
Obelisco Negro de Shalmanazar (858 a.C.), o autor conseguiu reverter diversas
fábulas, retirando destas sua moral original.
As fábulas passeiam da China aos nichos do INSS. Das mais simples e básicas emoções humanas até as filosofias mais complexas. Tudo isso temperado por uma noção surpreendente do mundo.
As Irrefutabilidades Matemáticas (XXX)
à maneira dos... Circassianos
Ney Sir, o Grande Agregado, foi visitar seu determinado e
importante discípulo, Ma Son II, Condestável Perene, levando pela mão o belho
filho. Ma Son II recebeu Ney Sir na Sala das Salamndras e lhe ofereceu um chá
de tulipas em Chávenas de Pranto de Alá, a mais rica louça do reinado de Luf Ma
IV. No meio da tertúlia entrou a mulher de Ma Son II, trazendo pela mão a
maravilhosa Íris do Sol, sua pequena filha. As duas se curvaram, no rito
secular, e se retiraram para os fundos da casa, pois é assim que devem fazer as
mulheres em todos os tempos. Nesse momento Ney Sir falou:
— Ma Son II, eu vim aqui com uma missão, e, ao ver a beleza
de sua filha, não resisto mais — que idade tem?
— Dois anos, Mestre — respondeu o Condestável Perene.
— Pois é perfeito — tornou Ney Sir. — Meu filho tem quatro
anos. Eu lhe proponho que os dois se casem no próximo Mês das Tamareiras.
— Perdão, Mestre, mas não posso aceitar tal absurdo. Acho mesmo
uma monstruosidade, uma proposta de infelicidade permanente para ambos: a
diferença de idade é brutal.
— Como brutal — disse Ney Sir. — Ele tem quatro anos, ela
dois. Uma diferença de apenas dois anos.
— Perdão, Grande Mestre, mas é espantoso defender tão
trivial matemática. Ele não é apenas dois anos mais velho do que ela; ou
melhor, isso não importa. O que importa é ele ter o dobro da idade dela. Se não
consideramos isso, nos perdemos numa aritmética pueril que, como sabe vossa
sabedoria, foi o que sempre fez a infelicidade dos indivíduos e dos povos. Hoje
ele tem quatro anos, ela tem dois. Mas amanhã ele terá oito, ela quatro;
depois, ela vinte, ela dez; em seguida, ele quarenta, ela vinte. E quando tiver
60 nada poderá advir de bom para um homem tão idoso casado com uma mulher que
tem apenas trinta anos. Perdoe-me, mas a diferença é demasiada. Aceita outra
chávena?
MORAL É por essas e outras (muitas outras) que nossa distribuição de renda é o que é.
Sábias Divergências (XV)
à maneira dos... siberianos
Dois homens de alta sabedoria se encontram no meio de uma
estrada estreita em Irks-Polustski. Um deles, vendo que o outro não lhe dava
passagem, gritou:
— Sai do meu caminho, filho de um cão pária e reco-reco.
Ao que o outro reagiu:
— Tu, que jamais tiveste consciência do espírito e espírito
de consciência, deverias sair do caminho de um homem que está acima das vãs trivialidades
do teu pensamento. Sai, afasta-te, verme!
— Se conhecesses os princípios e os fins, os mistérios da
escatologia, me darias passagem, cão sarmento e teco-teco — replicou o outro.
— Se princípios e fins fossem do teu conhecimento, há muito
já estarias morto, e a escatologia tinha ido pro brejo — questionou o segundo sábio.
Um professor de filosofia, que ia passando com seus alunos,
ordenou:
— Parem! Parem e prestem atenção às belezas infinitas das
altas discussões culturais!
Os alunos pararam e ouviram, até que um deles disse:
— Mas me parece que esses dois aí estão apenas se
esculhambando.
— Quando os sábios tratam de princípios e especulações filosóficas,
tudo que dizem é filosofia — explicou o professor.
— Mas, então, aventurou o discípulo —, quando é que a coisa
se torna ofensa e agressão?
— Quando é dita por qualquer pessoa comum, sem interesse
cultural. A cultura — aprenda — está sempre acima e além da prosaica busca de
convivência e harmonia social.
MORAL. Só na guerra se aprende a beleza da paz.

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